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terça-feira, 28 de abril de 2015

BIXIGA 70 - BIXIGA 70 [2015]

Para qualquer um introduzido na música africana, as primeiras notas de Ventania já soarão como umas boas-vindas calorosas.  E aqui eu quero lembrar outro disco que surgiu com uma sonoridade que também remetia a certa localização e à certo período, o último álbum do Cidadão Instigado. O que eu gosto em Fortaleza, é o retorno que o conjunto desenvolve, assim estabelecendo perspectivas novas para o presente. É como se eles formulassem o passado, mais do que reverenciando, aceitando e dialogando com estruturas que possibilitam novas abordagens. Reverenciar é algo perigoso na música.

O que não falta no terceiro disco do Bixiga 70 é o humor. Em todas as faixas, por mais que elas ressoem articuladas e seriamente desenvolvidas (claramente assim foram), a particularidade do Bixiga está na descontração inerente às variações sonoras. Há muita instrumentação variada e os caminhos que as músicas seguem são sim inesperados, ainda que sempre mantendo o entretenimento e uma espécie de “swing”. “Até onde eles vão?”, é o que pensamos sobre um disco que remete (ainda que não tão diretamente) às coisas mais essenciais do Moacir Santos e das batidas africanas. O catálogo que influenciou a banda na criação desse álbum deve ser de uma importância histórica incrível, onde essa difusão de gêneros que se encontram e se desencontram estabelece uma espécie de busca que pode ser creditada em toda discografia do Bixiga 70.

Tendo como premissa de que a música é essa exploração de terrenos latinos e africanos- onde percussão, guitarras e metais “dançam” conforme as diversidades rítmicas que o álbum oferece- as canções cumprem e saem vencedoras praticamente todas as vezes. Poderíamos questionar se não falta mais coragem para tentar cavar por diferentes propostas, mas é muito evidente o propósito do Bixiga 70. Não se deve pedir mais porque seu compromisso com essa sonoridade é algo intrínseco. Essa é a razão da banda e vai ser tão forte enquanto eles formarem trabalharem enquanto conjunto. Lógico que a produção é impecável e podemos imagianr os shows cheios de suor e cerveja gelada. É engraçado como uma busca tão respeitosa com mestres de tão variadas vertentes consegue soar sinceramente divertida apesar da rigidez dessas influências. Talvez a marca maior do Bixiga 70 é trazer toda essa alegria que às vezes queremos deixar de fora da música por “problemas conceituais”. O conceito também é o mote do conjunto, mas eles conseguem trabalhar isso sem nos fechar num espaço inóspito de mera contemplação.

Não há drama na música do Bixiga 70 porque ela não pode ser assim. Não, ela aperfeiçoa espaços muito bem trabalhados por predecessores em seus pontos mais fortes. Una isso com os excelentes músicos que os membros da banda são. Eu tenho muita dúvida do que podemos chamar de música contemporânea ou mera reverência, mas o ponto focal desse álbum não é uma locação histórica sobre possíveis evoluções/desconstruções. É o interesse espontâneo que cada faixa traz consigo e como elas são objetivamente divertidas e dançantes. Realmente uma trilha sonora que te impulsiona a sair de casa, enfrentar a claridade que esse outono brasileiro tem nos sufocado. Nada é fora de foco no terceiro trabalho do conjunto porque eles já estabeleceram qual alvo mirar e trabalhá-lo com o máximo de esmero e respeito.


A relevância que essa produção oferece hoje é mais do que clara. E principalmente, é muito importante que as memórias de cada investigação musical que o Bixiga 70 realiza sejam trazidas a tona e celebradas. E eles celebram bastante, lembrando que sua discografia é uma paleta de comemorações.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Stereocilia - Slow Motion [2015]

Erosão: As estruturas estão sendo destruídas. O desgaste é nítido. Estamos sendo transportados, vagarosamente, para um terreno desconhecido. Os guias são essas linhas distorcidas, que promovem ecos, são tomadas por eles. A guitarra sozinha, seus versos simples.

Sombras: Se há sombras, há uma projeção. Mas o que fazer quando as projeções são desconhecidas também? É possível existir a sombra do que não existe? Mas o que, então, se nossos atos passados, nossas frustrações irreparáveis. Nós mudamos tanto e, mesmo assim, não reconhecemos nossas formas. É como estranhar a própria mão. É como se a repetição desses sons fosse a única orientação em um vazio enorme. Mas há espaço aqui. Isso as repetições sugerem! Há terreno bastante para construções. Queremos tanto sair do determinismo histórico e quando essa possibilidade surge... As sombras são companheiras de travessias, nômades de erros distantes também. Vestígios esquecidos que se unem ao nosso imenso desconhecimento.

Refrações: Mudanças de direções, as sombras sofrem erosões também. Atravessa-se o espelho e de repente somos outros. Outros caminhos.

Corrente Submarina: Seriam as sombras projeções do que está submerso? Os sintetizadores ocupam o espaço, a guitarra que já versava sozinha na primeira faixa está envolta em repetições. A solidão é uma repetição. Um hábito que gera mais hábitos sem os quais nos deformamos e estamos dispersos. Engraçado como a solidão evoca nossos passos como se eles fossem uma espécie de origem. Engraçado como não nos lembramos do fluxo, mas a água continua correndo. A água quente, as névoas que a sobrepõem. Tudo é frágil e consequência e acaso.


Diferente do cinema, a lentidão na música é o próprio movimento (e a recusa/aceitação da ideia convencional de movimentação). Em Slow Motion, somos introduzidos a uma temporalidade formada entre forças opostas que estabelecem um enigma. Não se pode “perceber” nada nesse EP, apenas ter impressões. O que forma a impressão de lentidão? O que liga uma música a uma medida temporal? As coisas se movimentam e nós percebemos de outro modo, nada é exato. Pensamos não um passado, mas uma interpretação atual do que cremos que um dia existiu. Nossos passos, uma borboleta voando, as ondas se quebrando. A vida é uma formulação de quadros antigos se renovando por olhos cegos apreendendo pouco porque insistem em ver o mundo ainda com medidas. Não quero dizer que Stereocilia aponte um mundo inaugural e sem medidas. Mas que seu ato criativo insere uma rachadura na ideia de tempo e pode infiltrar uma visão para olhar além das concepções básicas. Não é uma recusa ao modo de construir as coisas, mas sim uma tentativa honesta de elaborar uma visão menos domesticada. Sem negar em instante algum que esta é influenciada. Mas, também, sem se aquietar em nenhum momento, porque há sempre algo fluindo.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Cidadão Instigado - Fortaleza [2015]

Redescobrir e progresso na mesma conclusão podem soar como evasão; progrediu para o que, então? Essas duas vertentes podem se encontrar na técnica, métodos aplicados para remeter determinada sonoridade à algo, onde os signos que surgem causa um deslocamento temporal porque nosso raciocínio assimila e representa essas conversões para um período de ordem cronológica. Onde podemos, então, encontrar uma vazão originária, algo que pulse e cause o terremoto sísmico horizontal que acredito que a arte pode causar?

Quero tentar focar aqui nessas rememorações em fluxo que um álbum como Fortaleza pode causar, e não apenas sobre as fluídas harmonias, as guitarras e o dialogo constante com vários espectros da música popular/folclórica brasileira. Se fosse me basear nisso, creio que seria melhor apenas ouvir o disco e não tentar explorar as possibilidades que sua audição causa. O Cidadão Instigado promove avanços sonoros que se esbarram em uma espécie de tradição, e nesses encontros não há problema nenhum em ficar ali, admirar as passagens, verdadeiramente forçar explorações e retornar a veia mais progressiva com impressões modificadas, como se cada retorno também modificasse a experiência futura.

Por exemplo, antes de um determinado retorno, tínhamos a impressão “essa música parece muito aquelas garageiras dos anos 70”, e depois- seja com o sotaque que se acentua e ganha força na melodia, ou com a música em coro que poderia figurar no Pet Sounds- embora a música tenha exatamente a mesma atmosfera, nossa impressão implodiu, estamos com registros antigos, mas com novas sensações. É como se não houvesse nem um “terreno de preparo”. Não. Embora a evolução seja com certeza lenta no disco, este é muito furtivo para simples apreensões.

Pausa para um afeto:
(Eu me lembro de ter quatorze anos e querer algo a mais. Eu me lembro de ter quatorze anos e estar ligeiramente enfastiado com o punk hardcore. A internet era discada em casa e as coisas não rolavam. Foi então que ouvi de verdade Black Dog. Quero dizer, já tinha ouvido tantas vezes, mas parece que naquela época isso veio como uma espécie de prenúncio).
Voltando para meu ponto:
Cidadão Instigado era, talvez, o que eu precisasse naquela época. Mais que um Jailbreak, algo que me fizesse sentir reconhecido com esse país (reconhecimento também como sensação de exílio) nesse jogo onde baião e psicodelia figuram juntos porque não tem como ser de outra maneira.


Queria falar mais sobre a cidade, mas não conheço Fortaleza. Mas não duvido de que deve ser também, uma cidade com tanta gente que quase não conseguimos olhar para as brechas entre os transeuntes. Não há pausa para a contemplação. O ódio se adensa. E dessa tentativa de achar espaço para a contemplação, sem renegar em instante algum a balburdia oferecida pelo concreto- por isso o som balburdia também- tentando encontrar paisagens possíveis além dos shoppings. E às vezes somos os “Zé doidins” que tentam encontrar vazios na opressão da realidade (tão difícil como encontrar brecha entre os transeuntes) para tentar escapar desse mundo lacrado. Para tentar escapar da fortaleza. A narração inteira desse disco é sobre as tentativas de reconhecimentos; em vagabundos, em músicas antigas. Na tentativa vã de se controlar enquanto queremos nos libertar.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Mz.412 – Hekatomb [2015]

Não há dúvida que a trilogia lançada em meados da década de 90 pelo  Maschinenzimmer 412 foi essencial para estabelecer o pós industrial- explorando um território limítrofe  entre Black metal, industrial, poewr eletronics e dark ambient. Criando obras extremamente perturbadoras, pode-se afirmar sem engano que o Mz. 412 é responsável pelos lançamentos mais extremos da música nesse mais de vinte e cinco anos. In Nomine Dei Nostri Satanas Luciferi Excelsi [1995] com loops obscuros e pesados, samples distantes e instrumental ao vivo, atmosfera ritualística e pequenas passagens mais calmas e serenas, tudo isso em pouco mais de uma hora. Burning the Temple of God [1996] tem aquela capa clássica da igreja pegando fogo, e é um ritual que relembra velhos clássicos da música industrial, em conjunto com um Black metal cru, e um dos primeiros registros entre o Black metal e o noise. Nordik Battle Signs [1999] fecha a trilogia com formas puras e extremas de expressão, profundamente inspiradora (a seu modo, convenhamos) e envolvente. O legado deixado pelo Mz.412 se dissolve em timbres perversos, onde a interação entre elementos extremos idealizam ambientes ocultos de forma extremamente sensorial.

No último dois de março, o MZ 412 lançou pelo selo inglês Cold Spring a gravação de uma desempenho ritualístico executado há quatro anos, na lendária The Garage, em Londres. A apresentação ao vivo marcou a reinterpretação do vasto material acumulado nos últimos vinte e três anos. É quatorze faixas, que são indicadas como atos e seguidas de algarismos romanos. Essa repaginação, mais do que uma forma de atualizar a visão musical, se apresenta como um embrutecimento daquelas faixas. Ou seja, é como se elas tivessem, de certa forma, mais “pobres”.

A claustrofobia ganha maior aderência, maior tato. É como se todos esses anos de produção, toda essa desolação somada, a angústia, a perversão e o caos fossem nos enfiado goela abaixo, sem dó. Imaginem todas as almas que rastejaram e elas agora nos fechando em um quarto escuro, sufocado pelo desespero. É um tipo de música que essencialmente ofende o estomago, onde as diferentes camadas sonoras (difícil identificar qual é a mais agressiva) abrasam ironicamente essas pseudo fortalezas em terrenos áridos, distantes, muito, muito cruéis. Como se apertar o play fosse abrir a caixa de pandora, mas em um local onde não há ninguém que possa compartilhar essa experiência, você está muito sozinho e apenas esses gritos de fantasmas distantes te acompanham. Penso nesses ruídos e relaciono com dizimação em massa, tropas marchando, soldados decepados, nos estupros cometidos, na maldade e na dor. É uma verdadeira carnificina sem escapatória, onde ninguém sobreviverá. Sem dúvidas, ninguém consegue ficar indiferente a esse tipo de catarse sonora.

São mimetizadas marchas militares com poderosos e implacáveis fluxos sonoros, onde a dizimação coletiva simula batalhas doentias onde ninguém escapa. Metais se distendendo e perfurando qualquer coisa que ouse passar na sua frente, ou atmosferas mais “calmas”, como se procurasse algum conforto existencial nessas manifestações malignas e só descobrisse um vazio, evocando experiências extras corpóreas, vozes demoníacas, gravações de chamadas a partir de rituais esotéricos exibidas em flashs durante a apresentação, combinado com gritos perfurados que originam mil manifestações eletrônicas. São episódios hipnóticos onde podemos ver uma maré negra que sobe gradualmente ao som de tambores de guerra e um relâmpago silencia toda essa miséria humana. Pode-se, por outra ótica, ver isso como um rito, uma passagem que libera em algo, digamos, mais essencial. Mas é um atravessamento extremamente duro, desconfortável e duvido, de verdade, que muitos aguentem presenciar uma apresentação dessas até o final.


Um trabalho como Hekatomb denuncia também uma movimentação poderosa de “música subterrânea”, nesse caso em particular, ligada ao pós-industrial sueco. Como se representasse o pior na descida dolorosa de Dante ao inferno, onde decididamente não há caminho verdadeiro, em uma selva tenebrosa, numa sinistra floresta onde nos deparamos com tristeza, solidão e desânimo. Lembro-me da movimentação interessante que ocorre no Brasil de deslocamentos parecidos e acho muito importante que as pessoas tomem nota desse registro. Registro de um local extremo e claustrofóbico, que existe com uma força derradeira.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Saturndust – Saturndust [2015]

Nós somos poeira cósmica. O universo é infinito. Até ai, nada de essencialmente novo. O problema é que nós teorizamos tudo- o gelo, a rocha, até mesmo os anéis de Saturno. As estrelas servem de orientação para as pessoas que passam sua vida no mar, mesmo em uma época em que a tecnologia predomina (ou assim querem garantir as pessoas do Ocidente). Mas há uma áurea inviolável, há um laço secreto que cegamente determina a movimentação das entidades que habitam o universo. E olha que maravilha, não saber nada sobre isso, não saber nada sobre o universo que nos habita. “Não somos melhores do que o universo, somos parte do universo. Estamos no universo e o universo está em nós”, Neil deGrasse Tyson.

Essa noção de espaço se prende aferradamente em nosso cérebro durante a execução de Saturndust. As transições entre as canções, os riffs esticados, como a própria ideia de expansão do universo, assim como essa atmosfera de transmissões espaciais estimulada pelas distorções- todas essas ambiências causam um deslocamento, estabelecendo uma estranha orientação; sabemos que estamos em determinado ponto do infinito, mas exatamente onde?

Os solos de Hyperion refletem essa grandiloquência da banda. É tudo enorme em Saturndust, os ecos dos instrumentos, a extensão de canções que se modificam em detalhes que transformam suas estruturas sem que percebamos exatamente onde as coisas mudaram. Como encarar uma paisagem que vai perdendo sua iluminação da primeira manhã até, muito lentamente, ganhar a escuridão noturna.

Mas não se enganem com esse fenômeno que eu tento descrever. As coisas são pesadas nesse álbum- sessões longas e arrastadas, os riffs da guitarra que são épicos e em certos momentos atingem níveis comoventes e as paredes sonoras massivas, onde os sintetizadores, a bateria, o baixo e o vocal erguem certa unidade que parece muito, muito difícil de transpor. Ao longo do disco, esse peso que nos fascina também é capaz de nos levar ao distúrbio, à perdição. Como eu disse, esse álbum de certa forma nos localiza, mas nos localiza em um lugar não tão grato e não tão bem estabelecido, em um ponto de um universo infinito. Agonizando entre a poeira cósmica. São nesses momentos que a sonoridade nos atravessa e nos dá mesmo a impressão de que não vai sobrar absolutamente nada.

De forma brusca, podemos perceber o que as tremuladas da guitarra junto com o vocal berrante anunciam no início do disco; uma trilha para a poeira, uma trilha sob o espetáculo das estrelas e através dos perigos terrestres. Em teoria, essa absolutização (estender e arrastar o som de tal forma que parece, muitas vezes, sem fim) reivindica não uma forma monolítica, mas sim abre a nossa subjetividade para manifestação de tais fenômenos.


Esses 45 minutos que o Saturndust nos entrega parece muito mais. Parece a dissolução- entre toda a sonoridade decididamente suja- em um universo cuja poeira é a principal matéria. Matéria que nos faz vivo e vai continuar depois de nossa morte, inevitavelmente.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Warhorse - As Heaven Turns To Ash [2001/ Re-issue - Southern Lord - 2015]

Muitas e muitas bandas morrem e isso com certeza não é nenhuma novidade. Esse foi o caso do WarHorse, que tinha seu principal lançamento há muito fora de catálogo. Coube a Southern Lord recuperar esse clássico esquecido. Não bastasse isso, em conjunto eles também colocaram as músicas do último EP da banda, I Am Dying. Como expoente do metal lisérgico e decididamente pesado, a abordagem do WarHorse tem em seu diferencial uma espécie de apropriação. Eles não tentam propriamente estimular algo, aqui tudo se trata da contribuição para uma suposta atmosfera.

Dusk” começa as coisas sem indicar nada. Uma ambientação baseada em instrumentos acústicos e sons difíceis de serem identificados instauram uma áurea de mistério, situando-se como mero esboço do que está por vir. “Doom’s Bride” é forçosamente lenta, se arrastando entre solos e riffs brutalmente distorcidos. A batida da bateria se esconde atrás da distorção e só ouvimos as principais viradas, enquanto o vocal anuncia sua maldição, em grunhidos. Chama atenção esses elementos conjurados num arrastamento. Já estamos no tempo evocado pelo Warhorse. “Black Acid Prophecy” nos leva de volta aos anos 70 e tudo o que mais pesado acontecia naquela época, certa unidade dos riffs bem altos que deixam tudo mil vezes mais “intragável”, distorções que tomam a música para riffs alavancaram uma sequencia derradeira que arrebata fácil qualquer fã de Black Sabbath. Mas são canções como “Amber Vial” que caracterizam esse disco como um clássico; sua estética lo-fi, totalmente voltada a elementos psicodélicos, assim, enquanto mantém o clima de “morte” do disco, entrega a esse tema uma abordagem completamente diferente, com certeza mais “sonhadora”. Como em um caos marcado, “Every Flower Dies No Matter The Thorns” surge sem comprometer a evocação da música antecessora e ela vai, numa medida hipnótica e sem pressa, nos devolvendo as angústias que as primeiras músicas disseminavam. Como um morto que retorna, esse é o Warhorse nos dizendo “nós somos assim e você não vai conseguir fugir disso, jamais”.

“Lysergic Communion” é um acesso de distúrbio. Claustrofóbica por causa de sua lentidão, seu preenchimento é basicamente as distorções estendidas. “Dawn” segue a linha de “Amber Vial”, e decididamente subproduzida, é outra escapada “mística” do ambiente arrastado e aprisionado do disco. Os riffs que pareciam um pouco esquecidos voltam a tona com “Scrape”, criando pontos praticamente indivisíveis, as baterias ganham propulsão e aquela unidade arrastada adquire mais corpo do que nunca no disco, onde tudo fica tão incomodo e alto que dá vontade de socar a própria cabeça porque, com certeza, a importunação será menor. Esse ciclo é outra vez quebrado com o piano repetitivo da instrumental e curta “And The Angels Begin To Weep”. O disco acabaria ai em seu lançamento original,  cumprindo sua função e construindo um terreno onde morte e misticismo são abordados. Porém, nesse relançamento, temos uma espécie de conclusão, que é onde entra “I Am Dying”. Percussões tribais e as distorções bem baixas funcionam como uma espécie de batizado da morte. “Horizons Burn Red” encerra com guitarras poderosas como serras dividindo os corpos, com certeza umas das mais poderosas no metal extremo. O vocal pela primeira vez (e última) opta pelo gutural, como se fosse para estabelecer o sepultamento.


Sepultando não só o disco e suas propostas, mas também o breve período de duração do Warhorse. Os membros seguiram para outras bandas, mas é inegável que As Heaven Turns To Ash merecia mais atenção dos fãs de música extrema, porque tem todas as características que nos aprisionam em estéticas tão radicais, adicionando certa dose de fascínio em temas totalmente pessimistas, ainda assim descobrindo encantamento nessas questões. Encantamento indicado nas faixas de menor duração, que indicam que o Warhorse não é só “morte”, mas também que também há escapismos. E o processo que o paraíso se transforma em cinzas é maravilhoso.

Odradek - Homúnculo Vol. 3 [2015]

O conceito de homúnculo talvez seja muito hermético, mas basta lembrar-se daquelas criaturas extremamente desproporcionais, cujas deformidades chamam a atenção, principalmente em um mundo onde a aparência anda tão alinhada e restringida. Talvez essas imagens nos orientem através dos três volumes de EP’s lançados pelo Odradek. Tive a oportunidade de ver uma apresentação desses caros, ano passado em Araçoiaba da Serra, e fiquei de boca aberta. Lá eles já davam a cara com a variação rítmica, sensibilidade autêntica e diversidade de timbres. As referências aqui também apontam algo; é impressionante como em apenas três canções fica a sensação de que não há repetição, entre as melodias vocais contradizendo com o instrumental feroz, a progressão sonora estimula novas formulações cada vez que há uma troca de tempo, por exemplo. Talvez esses surgimentos inesperados justifiquem o título.

O contraste entre o instrumental evidentemente progressivo e os vocais melódicos, as letras inteligentes ( I accept the challenge/ Little did I know/ That satan flirts with shaved legs/ High heels, painted nails and nasty offers) e a interação entre os instrumentos mantém uma dinâmica que não se desgasta. Ao contrário, cada momento é valioso em Homúnculo Vol. 3 e direciona conexões improváveis que ao se estabelecer desafiam noções “comuns” de música. Ao decorrer das faixas, percebemos que eles não se assentam nas mesmas engrenagens e que cada canção surge como um surto para surpreender o ouvinte. A bussola do Odradek não tem vergonha nenhuma de mudar abruptamente, - norte ou sul, a mudança de caminho é como se fosse a única “pré-exigência” da banda. Eu pensei, na primeira escutada, que as faixas, apesar de boas, soavam incompletas. Depois de algumas outras, fica claro que a mutabilidade de cada canção torna o processo de ouvir o disco repetidamente obrigatório- pelo menos se você desejar aproveitá-lo em seu máximo; os grooves surpreendentes, as viradas na bateria.

A diversidade é realmente o ponto forte do Odradek, e mais do que isso, como as transformações sônicas do disco se passam de modo que não invalidam a construção anterior e ainda assim tira o ouvinte de sua zona de conforto. Pense bem, essa dinâmica de mudanças constantes pode muito bem dar errado e soar ruim se não há uma vontade coletiva dos membros da banda.

Parte também da alquimia é a troca entre o idioma das letras, de inglês a português. Esses eventos que preenchem o universo de Homúnculo não servem apenas para mera contemplação dos ouvintes, mas muitas vezes essas inversões forçam uma ruptura entre o “esperado” e o que “surge”. A banda claramente está “dando forma” a um produto que parece muito longe do seu fim. Tenho a impressão de que, embora obviamente muito ensaiado, esse EP não surgiu de contornos pré-estabelecidos, mas sua modulação foi se transformando e ganhando corpo a muito custo, muitas ideias desperdiçadas e outras tanto aproveitadas.


O Odradek tem a moral de não “repetir” mesmos seus instantes áureos porque sabe que a construção que eles optaram é sempre de uma novidade surpreendente. Homúnculo traz acima de tudo uma tensão e tudo que pode envolver ambientes tensos- a guitarra fritando, o cinismo de alguma das letras, as jams que progridem e transmutam de forma implacável, as viradas loucas da bateria. Tocando o que esses rapazes tocam, eles podiam cair no limbo do mero “exibicionismo”, mas a construção desse EP implica em um não ostracismo evidente. Falei da tensão, mas a tensão de Homúnculo é aquele de que “sempre algo vai acontecer” e isso devido ao mérito da banda adicionar mudanças constantes em uma dinâmica estrutural que surge sempre algo “novo”. Novidade que nem sempre é tão aceita num mundo que todos ouvem “apenas o que gostam”, mas é um desafio que merece ser encarado.