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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Lugares esquecidos e desabitados- o cinema de Jim Jarmusch

I - Desvio Do Transvio

Se uma palavra pudesse ser evocada para advogar pela obra de Jim Jarmusch, eu utilizaria "inconsistência". Como tal, as multiplicidades que formam uma inconsistência são errantes; a revelação de uma equação que nunca se completa e sempre se desvia. Em Férias Permanentes(1980) isso é trazido à tona quase didaticamente; a resistência ao drama é a resistência à unidade. Seu cinema deve ser encarado como a totalidade incompleta dos desvios representada na cinzenta metrópole que só se permite ver de lugares esquecidos e desabitados.

Mesmo se tentamos encontrar cartões-postais em Férias Permanentes toda visão flutua disforme em contraponto à Era De Ouro do cinema norte-americano. Parece inaceitável, para o diretor, que haja qualquer intimidade reconhecível entre personagem-telespectador; o espelhamento na condição que eles se encontram no mundo é justamente produto desta renúncia ao drama. Para compor uma espécie de nomadismo há de se fazer escolhas que afastem as tramas de qualquer totalitarismo narrativo.

Para que as personagens-nômades possam ser reconhecidas, Jarmusch também negou o que seria -narrativamente- o ponto mais simples; ao invés de colocar personagens-localizadas (como faria, por exemplo, em Flores Partidas (2005)) para diferenciar a errância na protagonista, Férias Permanentes é um ante-universo constituído apenas por nômades. Portanto, os laços afetivos -que são claramente criados nos filmes posteriores- carecem de construção. Por isso, partir para Paris e fazer um acerto de contas antes de tudo isso. Não para manter ou cortar os nós. Mas para testemunhar justamente o que não é mais "seu"- no hospício quando a protagonista visita a mãe existe tantas possibilidades de vivência quanto conversar com um desconhecido que adora jazz. Busca-se não o compartilhamento mas um preenchimento situacionista.

Férias Permanentes

Mas se a situação inconsistente se preocupa, em certos instantes, em preencher algo, ela justamente rabisca um círculo que tangencia com o Uno mas existe -majoritariamente- fora dele.


Não pode se atribuir este mundo não-situado de Férias Permanentes ao seu filme seguinte, Estranhos No Paraíso (1984). Quem assiste o deslocamento constante de desencontros com grandes marcos norte-americanos em seus filmes pode reparar que a transição de um filme ao outro é ampliada no ponto de vista do equívoco. Estranhos No Paraíso carece de certeza, ainda mais do que Férias Permanentes. Se neste há a intenção de ao menos abandonar a cidade, o primeiro carrega uma falta de finalidade (a multiplicidade de projetos mal definidos) do início ao fim. A prescrição para tal nomadismo daquela geração residia de uma sensação de distância e não conexão com os supostos lares. A operação liberal carrega muitas pluralidades colaterais e a movimentação das personagens de Jarmusch parecem sempre pegar o desvio do transvio. 

O que não consegue ser representado em palavras e jogos cênicos- é necessário ir até um marco histórico e ver que não é possível desfrutar da paisagem pois aquilo já era outra coisa. O ajetivo "incomum" é utilizado para seus filmes, mas o que mais está em jogo é um desabitar automático, em que a imagem do nômade-solitário é menos evocada em prol duma gama de personagens que se movimenta sem saber porque e sem necessariamente querer viajar tanto assim. É evidente uma quebra no paradigma clichê de "errante", "exilado", etc. Uma apresentação axiomática de que não há uma origem de intenção. De que a própria resistência a se "acomodar" é algo involuntário. Esta regra imprecisa e invisível mas que está inegavelmente no cerne de cada personagem que alavanca os desencontros.Uma definição explícita nunca poderia ser nomeada- o transe é automático.

É claro que a banalidade das próprias personagens jamais poderia ficar no plano superficial dos dramas ou apenas dos acontecimentos. Eles têm que ser evidenciados em suas superfícies brutais; sempre olhando para uma cidade próxima, sempre querendo viajar, não aguentado nem ficar dentro dum quarto de hotel de estrada. Este procedimento, em conjunto com a contradição da câmara-parada, evita qualquer tipo de desejo-absoluto possível.


Estranhos No Paraíso

É compreensível que o desejo-absoluto nos filmes de Jarmusch pareça vetado; os meios para acessá-lo demonstram-se fajutos.

O tema axial de Estranhos No Paraíso é que o "teórico" deslumbramento das pessoas com os EUA foi destituído. Foi-lhes tomado. A partir deste ponto, resta ouvir & admirar velhas canções no rádio. O efeito deste sistema é uma errância involuntária. Esta reversão do sonho norte-americano não para um antagonismo, mas em função duma existência cujo trânsito reside no alheamento. A linguagem estrangeira de Estranhos No Paraíso revela, em conjunto com Férias Permanentes e as câmeras de ambos os filmes demasiadas distantes das personagens, um olhar estrangeiro sobre a uma "América" idealizada perante qual Jarmusch sempre exitou.

(como prenúncio à próxima parte, uma nota: os norte-americanos chamam o "estilo" de Jarmusch de Deadpan: uma forma de humor deliberadamente apresentada sem variação de linguagem corporal e de emoção, para contrastar com o ridículo do conceito).

II - Homogeneização do espaço

A abreviação formal da estética do diretor, mais do que um controle absoluto e limítrofe da movimentação das personagens, sinaliza para "seres" que já nascem aprisionados ou que "vegetam no simbólico" (Zizek). É uma questão de ser capaz de identificar as armadilhas da continuidade. O princípio fundamental é: há um mundo gigante a se percorrer mas o que neste Planeta é essencialmente   interativo? Em resumo, tem-se um espaço homogeneizado sem ser totalitário.

A realização gráfica de Daunbailó (1986) objetivamente constrói o cárcere norte-americano identificado por Jarmusch nos dois filmes anteriormente citados: as protagonistas, depois duma breve introdução do que elas fizeram, estão na cadeia e forçadas à um convívio.

  • Não há variação para os indivíduos porque, como em Férias Permanentes, o enquadramento estático delimita um espaço muito pequeno. Nós também seremos levados à um sem-fim de estradas e rios e rotas de fuga que não abrigam história alguma. Estes sinais designam a extensão da sensação de aprisionamento que toma conta dos dois protagonistas desde que a história começa.
  • Os quantitativos (quantos dias passaram, quantos dias faltam) também não demarcam muita coisa a não ser a visceral ausência em qualquer sentido. Os dois protagonistas, tão estáticos em suas equidimensões, são atravessados por uma variável (até então desprovida nos filmes anteriores): o também fugitivo italiano.
  • A variável representa a conjunção lógica (a intersecção entre Jarmusch e o Uno, no gráfico acima).
  • As relações de encanto não estão mais no teatro norte-americano e sim na intervenção estrangeira. A interferência do outro desestabiliza relações domesticadas e por ela pode-se contrapor narrativas tradicionais.
  • Os mitos norte-americanos pontuaram em excesso. Só resta rodar um país cujas histórias cessaram pela abundância.

Daunbailó 

Uma fórmula é uma disposição que -através de regras- objetiva um resultado. As regras do funcionamento místico norte-americano são símbolos, para Jarmusch, dum resultado que não caracteriza idealização alguma- a não ser, é claro, através de olhos estrangeiros. Por exemplo: em Daunbailó, a chegada do estrangeiro-italiano é primordial para regular doutra forma a relação monótona-tensa entre dois presos.

Uma fórmula indeterminada pode ser registrada com mesmo símbolos de outra anteriormente bem definida.

Para tanto, retira-se as quantificações. Trabalha-se com os mesmos símbolos e até as mesmas regras (a paixão por TV, rádio AM, estradas, dinheiro) mas o resultado já não é mais cognoscível; só há o espectro do desencanto. Na formulação de perseguir um fantasma impreciso, Trem Mistério (1989) caracteriza concretamente esta busca: o filme inicia com um casal japonês em solo norte-americano querendo conhecer a "terra" de Elvis e do rock'n'roll. O deslocamento (elemento indefinido) é a única invariação nos filmes de Jarmusch. Consideremos que é bastante representativo a única constante em seus filmes ser algo deveras inconsistente.

É intuitivo: o deslocamento do trem é perpétuo e as personagens situam-se nele, temporariamente vão à algum lugar, mas o trem (locomoção) é a constante.  Nesta fórmula de pessoas que orbitam um vagar impreciso as únicas medidas relativamente apreensíveis são as interações entre: sujeitos, ser x lugares. O método em questão determina o vagão do trem e suas ações (e consequentes subvariantes) como deslocamento que não anula uma ação dramática- como seria no avião, por exemplo. Nós frequentemente percebemos o trem com diversas funcionalidades (partir, conhecer o Estados Unidos, transporte que afasta as pessoas amadas). A força do significado do trem, no entanto, nunca seria possível sem uma cidade fantasmagórica de segundo plano. O cinema de Jarmusch não representa apenas um deslocamento constante , mas sim uma locomoção-contínua entre os lugares esquecidos e desabitados. Esta conjunção que protagoniza o norte das personagens- eles que frequentemente não entendem isso, pois há a sobreposição dos símbolos da cultura capitalista. Por exemplo, o protagonista interpretado por Joe Strummer, quando perde sua namorada, age inconsequentemente por muito tempo. Até que, forçosamente, se vê na estrada com seu amigo e seu ex-cunhado. Quando os símbolos-sociais de estabilidade são implodidos (relacionamento afetivo) a brecha para outra estrutura (deslocamento nos lugares desabitados) pode ser melhor interpretada.

Trem Mistério

Enquanto Trem Mistério se desenrola, nós entendemos que todas as histórias se cruzam e seguem outro caminho. Para isso, é necessário ressignificar os objetos para que seu excesso de significado, seu exagero de produto, não interrompa uma relação de constante troca entre pessoas e lugares. As áreas tem direito de respirar, também. Por exemplo; um velho hotel é percebido hostilmente pelos norte-americanos mas se apresenta como fascínio (para o casal japonês) e salvação (para a turista italiana).Um mundo em que os objetos tenham significados equivalentes para todos está fadado ao esquecimento. Na fórmula do deslocamento, a filmografia de Jarmusch foi adquirindo, cronologicamente, uma universalidade. Em Uma Noite Sobre a Terra (1991) o modo antológico que o filme é narrado evidencia esta necessidade de amplitude. A mecânica das variáveis ficam mais difíceis de localizar neste filme e, ao invés uma pessoa encarnar este papel, elas flutuam para apreensões momentâneas em cinco lugares diferentes do globo terrestre. Consideremos como exemplo a delimitação do espaço em Daunbailó que é repetida em Uma Noita Sobre a Terra: mesmo no cárcere dos táxis a perambulação abre-se como processo de percorrer lugares místicos.

A particularidade do cinema de Jarmusch reside na resistente obsessão de atravessar o mundo, de se locomover até o ponto em que o eco dos símbolos instituídos percam suas forças. Foi dito que este travessamento é resultado direto de inadaptação à consistência (composição de unidade) e um apelo à inconsistência (fragmentação derivada do trânsito). No entanto, a inconsistência não é fácil de ser exibida em tela- pois temos uma estrutura que só admite o que consiste. Para construir uma filmografia que impele o ser ao movimento, Jarmusch teve que construir um mundo-fantasma (desgastado das cidades-padrão) em que a movimentação (em Uma Noite Sobre a Terra isso fica evidente, afinal é um filme que se passa todo em táxis) se regula através do mundo-aparente e o mundo-esquecido. A inconsistência deste tráfego é auxiliada por personagens que não sentem atração por um modelo específico (a motorista de táxi que se recusa a ser uma atriz de Hollywood). Ainda assim, o que é expressivo na taxista não é seu descaso pelo potencial estrelato; e sim sua familiaridade com o trânsito. Em geral, seus filmes se passam com pessoas habituadas à estrada.

Uma Noite Sobre a Terra

(variável 1: a motorista de táxi que, ao chamar atenção duma figura importante de Hollywood, se recusa prontamente a trabalhar como artista da indústria. Variável 2: na segunda história de Uma Noite Sobre A Terra, um rapaz quer ir de Manhattan ao Brooklyn. O taxista é um refugiado alemão que praticamente não sabe dirigir).


Ao contrário de road movies imponentes, a própria familiaridade entre personagens e ruas revela uma relação imprescindível; vagar é o único passaporte do ser para outra visitação-possível. Nada é apresentando neste mundo, é necessário transgredir ao outro. Mas uma das marcas do cinema de Jarmusch é que este processo não é consciente nem necessariamente voluntário, mas a atração do espectro fantasmagórico dos lugares esquecidos é impositiva de alguma maneira. O ser não está mais à margem de um acontecimento, as interações adquirem uma nova possibilidade. Para ter certeza de que a transgressão é mais magnetizada involuntariamente do que qualquer outra coisa, Homem Morto (1995) é a movimentação surrealista deste largo espaço desabitado que constitui o universo de Jarmusch. Apesar deste mundo não exigir nenhum pré-requisito, para adentrá-lo o protagonista William Blake (Johnny Depp) tem que passar por sua espécie de provação espiritual. E o filme se constrói de antíteses: é um anti-western por excelência, o índio que auxilia na errática transição de Blake é deveras ocidentalizado (ainda assim anti-caricatural). É este nativo renegado por sua própria tribo que se apresenta como variável para evidenciar à personagem interpretada por Depp que o mundo-dado deve ser deixado para trás.

É claro que neste percurso bizarro de western residem múltiplos fantasmas de uma supercultura (a norte-americana e, em último estágio, a ocidental) que figuram tentando interromper (ou acelerar, fica bem ambíguo) a transição de Blake.

Homem Morto

Por consequência, as pessoas que aparecem no caminho de Blake são seres também perdidos e que andam em ciclo na intersecção entre-mundos.

Para colocar isso mais claramente, na última cena (de quase dez minutos) a partida de Blake é contemplada pelas personagens que ainda restam vivas em meio a situações idiossincráticas. Assim como nós (a audiência), as personagens observam um barquinho transitando ,carregando um corpo frágil silenciosamente rumo à bruma que encobre o plano de fundo. A transição sentido à um suposto nada, para Jarmusch, é a confirmação da morte de quem já está fadado à ela. Simples assim.

Assim como o estado idiota da morte em Homem Morto, as pessoas transitam no mundo Uno sem ter a noção da imanência de outra coisa. Se estamos em algum lugar e não podemos dispor dos elementos totais pelo ocultismo que o mundo impõe, há a noção de seus fantasmas. Ghost Dog (1999) representa uma conta total de códigos (visíveis ou invisíveis) que caracterizam a intersecção entre dois universos. Ainda tão "estranho" como os outros filmes de Jarmusch, Ghost Dog é um resultado direto do que se compõe como personagem construída velada na imposição do concreto.

Deve-se assumir que o senso de bizarro em Jarmusch é medido não pela caracterização ultra banal de ambientes & pessoas (como num teatro, por exemplo) e sim que o sentido fragmentado orienta as personagens em bloco. Num mundo indeterminado, sua obsessão não é sofisticada e sim reside em estilhaços espalhados pelas cidades que as personagens transitam. Além disso, a surpresa em seus filmes não se dão palpadas em viradas de roteiro, mas pelas pessoas em seu mundo sobreviverem de forma instintiva e com códigos-próprios que podem, ou não, tangenciar com os estruturalizados. A lacuna surreal de Ghost Dog tem justamente tal adjetivo por apontar elementos não-contados na totalização dum universo. Situar seus filmes como realismo-fantástico tem uma vantagem bem perceptível: que a realidade tem um limite e a fantasia (o que não é real, o que não é contado na totalização) tem um acesso.

Ghost Dog

Ainda assim, não existe delimitação neste plano vasto: as interferências entre cada mundo são apresentadas em praticamente todas as cenas. O "nada" não é passado como horas de silêncio ou algo pareccido; o inapresentável é evidenciado, por exemplo, no gangster italiano que é fã de hip-hop e discute os flows & letras de seus mc's favoritos.

Naturalmente que na falta de seriedade de Jarmusch as lacunas são apresentadas. Isso é visto naturalmente como algo cômico ou "esquisito" pelo cinema mainstream, mas a adjetivação de "estranho" é mais precisa porque a repulsa das personagens pela estrutura-caricatural da humanidade é involuntária. Se alguém se encontra no absurdo, então ele já superou consistentemente a noção frágil de realidade. A única coisa que podemos afirmar é: para entrar nessa espécie de "fantasia" de Jarmusch, o acesso é concedido através de símbolos, como em Flores Partidas (2005). Mas nada é local e estacionário- o garoto transitando sempre "entre" mundos em Férias Permanentes, colecionando histórias alheias e nunca autobiografando um rastreamento próprio.Se em Estranhos no Paraíso há um consumo de imagens-idealizadas até que as personagens vivam somente através do simbólico, o ultra simbolismo de um road movie sem redenção é, talvez, o único final possível para os dois primeiros longas do diretor. Ainda assim, Flores Partidas talvez seja, de todos seus filmes até então, aquele menos estranho a realidade e, com certeza, o mais palpável. Mas se as personagens aparentam ser minimamente estruturadas, os Estados Unidos Da América deixa de apresentar pontas fantasmagóricas para ser uma imagem batida e inútil. Neste inventário duma sociedade indisposta, Don Johnston (Bill Murray) tem que forjar objetivos -com o auxílio de um amigo de classe-operária viciado em investigar- para tentar criar alguma consistência de si.

Porque, aparentemente, tudo apresentado a Don tem um valor entediante & nulo. Seu status de tédio parece não ser alterado por nada; no rompimento com sua autoproclamada amante (mesmo sem ele ser casado) ou pelo recebimento duma carta que afirma que ele teve um filho e nunca o conheceu. Portanto, com o auxíliode seu vizinho (que é a variável nesta equação e guarda alguma similaridade com o fugitivo italiano em  Daunbailó) é traçado um mapa para percorrer e encontrar seu suposto filho.

Flores Partidas

O acesso à fantasia (para o amigo) e ao nada (para Don) são parecidos e Jarmusch atribui para as personagens uma significação possível através de cada clichê-norte-americano.Não importa a nomeação ou o lugar; o fascínio, aparentemente, é sempre externo à uma vontade própria- como o casal japonês em Trem Mistério. A motivação alheia, no entanto, pode, às vezes, indicar acessos anteriormente velados pela habitualidade dum mesmo olhar. Se, de alguma maneira, o racionalismo ainda subiste em todos seus filmes até aqui citados, Os Limites Do Controle (2009) é a obra mais radical de Jarmusch: não há centro de racionalização e a comunicação se passa toda pela inconsistência (o que não é somado no Todo).

A indeterminação da motivação em Os Limites Do Controle é um automatismo dum simbolismo (as grandes cidades europeias) tão esgotado quanto os lugares-fantasmas dos E.U.A. O que está em jogo é uma temática já abordada nos primeiros filmes (Férias Permanentes, Daunbailó) que se desdobra refinadamente mostrando que qualquer vazão de recursos está esgotada. Não há mais como ao menos esboçar a representação dum lugar não selecionável. Seria inexato e injusto falar em niilismo, mas uma ambientação que constantemente se anula (ou seja, apaga e extingue os valores por ela mesma criada) é imposta e a dificuldade que apresenta é enorme.

A saturação dos símbolos, diz Jarmusch, proporcionou esta nulidade vasta. Além disso, o que não é evidenciado na equação final (a fartura absoluta) encontra a falta de sentido primária estando, paradoxalmente, próximo e também distante de qualquer espécie de Unidade.

Como nulidade entende-se o que não está impregnado na somatória global. A protagonista vaga por cartões-postais europeus assim como a personagem de Bill Murray em Flores Partidas: vagando por paisagens que apresentam muito e escondem pouquíssimo.Estas pessoas não são automatas pós-industriais (reféns do ultra capitalismo) ou pós-modernos (oprimidos pela falta de sentido) mas sim uma parte dum Todo nenhum. A nulidade indica o fracasso do todo e impõe a protagonista num terreno austero em que tudo já foi rejeitado.

Os Limites Do Controle

Esta questão de nomear os locais pode parecer meio exibicionista, mas fica muito nítido, enquanto acompanhamos a trajetória do protagonista de Os Limites Do Controle que ele está se locomovendo por uma nulidade absoluta e que as incessantes repetições não destoam nada desta marginalidade (na verdade, nesta distância-absoluta) do Todo. O nome do filme indica justamente esta locomoção inútil em que controlar sua situação enquanto transeunte do nulo é impossível.

A nulidade é este espaço em que não há uma estrutura (por isso o surrealismo de Os Limites Do Controle) plausível e tanto repetição quanto novidades não conseguem erguer sequer um esboço de eco ou algo minimamente sustentável.

É essencial lembrar que a exaustão dos símbolos não anulam a sensibilidade do protagonista. Ao contrário, parece residir na emoção deste homem qualquer salvação deste desgaste ambulante que o mundo transforma e cria. Sob o regime normal da apresentação, numa deterioração insípida de absorção sufocante dos símbolos, a contemplação dos quadros por parte da personagem principal revela, em seus olhos atentos e seu corpo simetricamente enquadrados pela câmara, um rompimento desta linha antagônica.

A nulidade se estende para o vampiro Adam em Amantes Eternos (2013): o protagonista tem um olhar melancólico & apático sobre uma suposta decadência da humanidade. O evento amoroso, no entanto, parece lhe emprestar uma ação do possível em sua estagnação contemplativa (ele ouve rock'n'roll, música clássica, lê grandes obras).

Mas a transformação do amor é um ato recíproco que perdura a eternidade para sacralizar os instantes. O regime normal das coisas que simbolizam o apreço são trazidos ao casal de Amantes Eternos como acessos invertidos; da inconsistência (eternidade) ao mundo (mortalidade)- a última cena, com certeza uma das mais caóticas na filmografia de Jarmusch, evidencia esta admissão.

Amantes Eternos

Daí um encontro forte com outros dois filmes: Homem Morto e Ghost Dog, em que o transe contínuo (a câmara girando) não funciona apenas num sentido meramente estético, mas corresponde à relação problemática que as protagonistas têm com a realidade- não à toa, Homem Morto e Amantes Eternos são filmes sobrenaturais que metaforizam morte & eternidade para transpor, narrativamente, a sombra da existência humana:
  • Detroit, assim como no filme Corrente Do Mal (2014, de David Robert Mitchell), é refletida ontologicamente como um epicentro-moderno & deserto, cujas estruturas sociais e esqueléticas (pela estética formal dos filmes) estendem um território deserto, apesar de todas as construções urbanas 
  •  a estrutura somente é possível para as pessoas que parecem ser dotas de certo dom que transgride o real- o vampirismo em Amantes Eternos, o demônio que somente o "escolhido" pode ver em Corrente Do Mal, a vida que apenas Depp acha que ainda existe em Homem Morto, o código do samurai em Ghost Dog.
Nós podemos, sem ser generalistas, atribuir todas estas personagens em uma nulidade que, embora obviamente se destoa do mundo experimentado, tem uma fidelidade ao real e que parece percorrer todos os filmes de Jarmusch- o que é deixado de fora é filiado, inexplicavelmente, à estrutura Total.

É importante estabelecer este ponto de Jarmusch que em muitas derivações se assemelha com a primeira fase de Wim Wenders- ambos se situam como estrangeiros mas buscam uma variação (a mortalidade, no caso de Amantes Eternos) que evidencie a possibilidade de conexão, de sentir-se amparado por uma pátria, ainda que em mínimos instantes. O trabalho intenso do diretor em Amantes Eternos, ao contrário dos seus primeiros filmes em preto-e-branco, realça um detalhamento que Jarmusch aos poucos descobriu através da técnica de filmar: o sentido abrangente das imagens é testemunho do abrigamento-possível. A investigação está longe de ser apenas teórica e deposita numa larga escala de personagens a contínua sensação transitória que independe do mundo/plano que você esteja. A ciência, no entanto, é encerrada na última & caótica cena de Amantes Eternos; esta que não apenas rejeita praticamente todos os finais de filmes do diretor- o navio pra lugar algum em Férias Permanentes, a estrada para lugar algum em Daunbailó, o barco quietamente rumo ao breu em Homem Morto, a morte concreta em Ghost Dog, o reencontro frustrado com o filho em Flores Partidas, o ciclo sem fim e sentido em Os Limites Do Controle- mas que aponta, pela primeira vez em sua filmografia, um futuro reconfortante.

Conclusão: A multi-representação de Jarmusch

Paterson

A existência de uma verdade é multi-representativa e multidimensional- tal qual Paterson. Está claro: a cidade Paterson, o livro-de-poemas Paterson e o protagonista Paterson possibilitam interações que se movimentam amplamente em sentidos diversos- avanço, colateral, recuo e coisa e tal. Se fosse o caso de apenas ser um filme de encontros entre pessoas (como é na maioria dos filmes de Jarmusch), Paterson deixaria de apontar o que seria sua maior força: potencializar o cotidiano. O ato de filmar é evocado no filme com um acesso repentino às intimidades diversas. Assim como o Vazio é gigante para um conflito, dele mesmo se subtrai tudo o que agiganta a interação entre humanos e a descoberta no dia-a-dia.

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