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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A fé de Thomas More em Utopia

A crença de Thomas More na força do ser humano persiste por mais de 500 anos numa época em que a fé é encarada com deboche.



"O homem, afirmam, está unido ao homem de uma maneira mais íntima e mais forte pelo coração e pela caridade do que pelas palavras e protocolos"

O que é a Utopia, essa palavra mal usada? O mundo imaginado por Thomas More era a representação da sua vontade em relação à extinção dos problemas sociais. Grande exemplo do humanismo, o autor teria sua cabeça decapitada por ordem do rei Henrique VIII. A crença no ser humano parece irônica quando não houve irmandade em relação aos supostos crimes que More pagou com a vida.

Os utopianos, cidadãos da ilha de Utopia, não acreditavam em tratados- pois estes colocavam os Estados acima dos seres humanos, causando a separação. As brigas são causadas pela distância, pela impossibilidade do reconhecimento do outro. Trancados em sua riqueza e em sua torre de marfim, não é de se duvidar que tal empatia cognitiva inexista em poderosos como Henrique VIII. 

O gosto pelo ser humano não impediu a sentença de morte que , no caso, foi recusar-se a prestar juramento religioso ao rei (ainda que More fosse ardoroso católico) e reconhecer o poderoso como figura maior no âmbito da fé.

Perceba que o humanismo demonstrado por Thomas More tem como forte causa de identificação o sentimento religioso, sendo sua fé tão intensa que se recusou a fazer uma espécie de "empréstimo espiritual" por acreditar na existência divina de forma inabalável. Acreditar sinceramente na força da razão e se defrontar com um mundo concreto em decomposição foi, provavelmente, seu maior teste de fé- não em Deus, mas na grandeza compartilhada na qual ele profundamente confiava.

O sistema político perfeito
No caso do livro Utopia, essa fé mostrou-se inabalável quando o autor atacou a "licença moral" promovida por Maquiável ao evidenciar que há outro mundo além deste corrompido. More, que exerceu diversas ocupações (desde advocacia à diplomacia), destacou-se ao avaliar a falta da empatia como marca de uma sociedade decadente. Saindo da posição cômoda, é notável a coragem do escritor ao vislumbrar outra forma de sociedade além deste mar-de-lama.

Como alguém disposto a conduzir seus contemporâneos a acreditar que os poderosos devam agir pelo interesse coletivo, atacou duramente reis e príncipes ao dialogar diretamente com os cidadãos. A forma de Utopia (diálogos platônicos) mantém o leitor frequentemente atento às diversas conversas entrecruzadas que se opõem à narrativa central (a distribuição política da ilha Utopia), a qual constantemente cita exemplos opostos às ordens vigentes.

Rafael Hitlodeu, personagem principal, narra os fatos da ilha e explicita sua não vontade em participar de nenhum tipo de governo que não seja o de Utopia. Essa renúncia de Rafael, no entanto, não é compartilhada por More em sua vida privada. Para mudar o mundo e torná-lo um lugar melhor, é necessário negar o jogo sujo e a hipocrisia do "bem maior" e enfrentar as consequências de uma sociedade a qual você mesmo condena. O que é exatamente o contrário do loteamento estatal promovido pelos nossos governos desde as primeiras eleições diretas (com raríssimas exceções).

Se ,para Rafael Hitlodeu, a renúncia à configuração social é algo impossível após testemunhar a perfeição de Utopia, para Thomas More -cuja fé no ser humano não o deixa ser imparcial perante o jogo político- desistir foi algo impossível. A hipótese de deixar se submeter é proteger as falhas estruturais da sociedade. O fato de existirem pouquíssimas leis na ilha de Utopia (e a consequente ausência da classe de advogados) faz com que a concepção de More a respeito do sistema judicial seja evidente.

O símbolo da decadência social talvez seja a quantidade de leis que uma sociedade compõe. O não conhecimento das leis ,para Thomas More, não reflete a suposta ignorância do povo, mas é o hermetismo das sentenças judiciais que o deixa sem palavras, sem condições de defesa. A consciência da existência de uma linguagem tão complicada não erradica o problema. Para tanto, a alternativa do autor ao criar uma sociedade com campo jurídico inexistente. A sugestão de More pela abolição das leis e da sociedade privada constituem a crença no ser humano sem adornos, preocupado com coisas mais notáveis e não submetido às aparências desprezíveis (ouro, vaidade, distinção etc.).

Há ,por trás dessas críticas, a urgência da necessidade de uma reconstrução da divisão dos bens em prol da diminuição da desigualdade. Na Utopia, a livre crença na alma humana não se imortaliza apenas por sentimentos religiosos, mas pela fé na vida em todas as suas manifestações tanto espirituais quanto sociopolíticas.

Na ilha de Utopia, o valor do ouro é ínfimo porque não tem funcionalidade específica para a sociedade (ao contrário do ferro, por exemplo). Descobrir as coisas realmente valiosas talvez seja uma das empreitadas mais corajosas de More. A potência da humanidade está oculta, embaixo do véu do abstrato (paradoxalmente real) como o ouro, a guerra etc. A trágica situação política, os projetos dos colonizadores (em uma linguagem do século XXI: as instituições neoliberais) e o horror da miséria são ferramentas de manutenção desse encobrimento.

Uma nação tem como problema a carência de imaginar um projeto utópico alternativo, o que a impede de sair da asfixia do mercado, o que a impede de atender necessidades elementares. Desenhar a imagem de um país que "pode ser" e que "deve ser" trata, para More, de um gênero humano novo. A política momentânea é deixada de lado para o "pensamento da eternidade" (a utopia política de Guimarães Rosas, quatrocentos anos depois). Utopia é o projeto político de romper com essa merda, com a fome, com o desemprego e com o descaso das instituições canônicas. A experiência das ocupações de terra no Brasil, o esboço criativo antevisto por Rosa e a luta pela reforma agrária cabem no projeto impossível do escritor inglês.

A criação do movimento utópico, a partir da incorporação pragmática dos ideais de More, dirige o Estado a uma ideia coletiva de riqueza cultural, cuja experiência teórica continua a fundamentar os diálogos entre os mais diferentes campos sociais.

Período Anormal
O povão brasileiro necessita de uma abordagem intelectual que tenha um projeto dialogante com suas necessidades e urgências. Parece que as propagandas conversam mais com nossos cidadãos do que qualquer esboço de projeção acadêmica.

A dúvida do narrador de Utopia se o livro deveria ser publicado é fundamentada no quanto a obra realmente tinha a dizer para as pessoas. Há, até mesmo, o receio de os "juízos absurdos" de outrem. As pessoas não conheciam e tinha medo da literatura (o que não é diferente do contemporâneo. Se, mais de quinhentos anos depois, esse medo persiste, vale questionar de quem é a responsabilidade).

Ser condenado ao silêncio ou à morte? More não teve dúvidas. A derrocada humanista é conferida no que os quinhentos anos posteriores ao livro trouxe à humanidade. O argumento de More se mostra como uma tímida fagulha no escuro em um imenso campo neoliberal, cuja fundamentação insiste no papel cada vez menor do Estado nas esferas sociais.

More não necessariamente via uma representação democrática como bom papel para reparar os equívocos destrutivos forçados pelo poder. Segundo ele, a representatividade popular de um bom político se dá a partir de um redimensionamento do papel dos governantes na ordem social (rebatendo, mais uma vez, Maquiável). Aí está a vigilância espontânea que erradicaria a miséria, o silenciamento popular etc.

A fundação da humanidade, portanto, passa pelo bombardeio da condição de governáveis àquela de possibilidades incríveis, em que uma nação está apta a realizar suas potencialidades.

More deu muito a mundo por crer na condição humana.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

As tonalidades do Brasil ("Que você é esse?", de Antonio Risério)

"Que você é esse?", de Antonio Risério, ratifica a história da miscigenação do Brasil sob a perspectiva de um tempo, paralelamente, obscuro e esperançoso.



"Se um dia eu resolver dar um tiro na cabeça, podem ter certeza de que não será na minha"

O que é a escrita de um povo, contar suas histórias, a não ser um esforço de atribuir a maravilha da ficção a uma meio técnico, pouco maleável como o historicismo rígido?

Desde o primeiro "conto" do livro (não entendam mal, é um romance) se guarda uma tentativa de encontro sob a luz da miscigenação que se descobria possível e era, como é hoje, interrompida por ordens hegemônicas. Um "diário histórico" inaugura-se a partir desse conto: cheiro de matas, comidas específicas, rios, rituais religiosos.

Um caderno temporal ganha vida no segundo capítulo, em que a história avança mais de 500 anos e estamos no tempo presente, descobrindo que o primeiro conto é -na verdade- uma escrita do protagonista real do romance. Risério é um dos autores que pegam o que muitos atribuem ao romance pós-moderno e deixa claro que, além de todas descrições sensoriais, o livro também dialoga com o fazer literário: "meta literatura". "Que você é esse?" é composto por dois eixos que se entrecruzarão até o fim do romance alternando entre a história da formação brasileira, nunca sob o ponto de vista pragmático, e as pessoas que vivem ao redor do protagonista, que podem ser rotuladas com a imprecisa alcunha de "intelectuais". Em "Que você é esse?" o narrador escreve sobre um país numa carta de amor disposta às maiores expressões de beleza que residem atrás da totalitária opressão histórica.

Daniel Kertzman, o protagonista, enumera sua história e a relaciona com várias passagens de formação importante para o país nos últimos 50 anos. As distâncias entre os eixos temporais apresentam sua diferenças óbvias, entretanto o que mais chama a atenção é o desejo simbólico que as une já que são, teoricamente, tão divergentes. A história se repete, a seu modo. Quando o enredo segue alguma cronologia, é narrado como as sociedades judaicas se organizaram no Brasil, especialmente na Bahia. No presente em que se escreve, as personagens encontram-se transitando e mudando de posições políticas e afinidades artísticas (mutáveis como a figura do camaleão que inicia e encerra o livro). É uma época em que não é possível ficar restrito a um nicho identitário e a abertura a outras perspectivas é um movimento constante, como ocorreu em toda formação geoespacial brasileira. A dor dilacerante dessas mudanças já foi (e continua sendo) insistentemente reclamada, mas esse é o mesmo processo que fez com que, por exemplo, judeus de classe-médias aderissem ao candomblé.

Depravação aristocrata
Se a ponta da formação histórica do Brasil é narrada com altas doses de violência e erotismo que são raros em livros históricos tradicionais, a história contemporânea humoriza -não sem certa tristeza e ironia- a depravação de nossa elite política e empresarial (que se mostram, praticamente, a mesma) tal qual a aristocracia pequeno-burguesa de outra época. O que chega ao leitor é a ressurreição de nossos antepassados fantasiados em momentos-chaves, seja no presente mais recente ou na luta armada contra a ditadura militar. A leitura que se segue é a marcada em carne-viva sobre os efeitos coloniais e pós-coloniais, em um lapso temporal que diz justamente sobre as próximas eleições, sobre os movimentos urbanos (ONGs, manifestações etc.) e a capacidade de absorção de diversas frentes. Reivindicações e reinvenções são liberdades capazes de refazer a história, em que princípios antigos se mostram necessários para abolir a moral vigente sobre a qual os privilégios se perpetuam.

O protagonista passa pela infância, fase adulta e chega à chamada terceira-idade com mais vigor do que nunca. Isso porque ele soube que o camaleonismo é a herança principal do brasileiro, a qual traz todas as vantagens e desvantagens em um país no qual o privilégio de classe define a distribuição de cargos econômicos e de posições sociais.

Como numa antologia sobre  a história de nosso país em uma perspectiva individual, as transgressões e manchas de violência (física e econômica, já que estão quase sempre casadas) organizam a construção desordenada do Brasil. Assim, torna-se nítida a claridade desses pontos em comum, que horizontalizam a visão hegemônica sobre o país em desespero individuais e grupais, mas encarnando esperança e possibilidades utópicas. Dessa maneira, a conscientização passa pela narrativa comum - que é, ela mesma e sem truques mirabolantes, a heresia que sempre foi inerente à população brasileira. Mas, mesmo nesses casos, a desorganização é um fator latente- o que permite às campanhas eleitorais, pormenorizadas devido a presença de Risério na campanha a favor de Dilma, fragmentarem a sociedade sob o discurso da multiplicidade, tornando tudo moeda de troca para voto e garantias de favores.

Há uma crítica feita ao livro sobre os "exageros eróticos" em ambos os tempos narrativos, mas "Que você é esse?" é um romance de exageros que mostram a distinção de cada momento e a forma como o fator "desejo" governa o ser humano há séculos. Assumir isso como um "risco" ou "desvio narrativo" é retirar do livro sua personalidade mais forte- além de sua boa prosa. A intenção do autor não é "retirar as personagens femininas das rédeas do patriarcado", mas lidar com o desejo como fator alternativo às instabilidades políticas e ideológicas. Ver "pornografia narrativa" como exemplo contrário de sutileza é sobrevalorizar o ato sexual, como se apenas outros tópicos fossem válidos de repetição. O livro seria reacionário se recusasse o barroquismo apenas em uma de suas vertentes.

Portanto, a narrativa não se torna totalitária nem busca abarcar toda uma espécie - mas esculpe uma linhagem de "espírito coletivo" que atravessa a formação sociocultural brasileira. Logo, a necessidade do romance abordar as mais distintas regiões brasileiras e narrar episódios poucos contados pelo historicismo hegemônico (a libertação da Bahia, por exemplo).

Para não se limitar a redução do que a ficção pode ou não falar, Risério optou por formas de reapresentar a eclosão multiétnica que atravessou a formação cultural brasileira, para reivindicar o pluralismo que é ameaçado sempre por forças contrárias aos consensos coletivos- seja por interesses financeiros, políticos ou religiosos. Em relação aos personagens-autores que se esforçam para criar uma obra "de valor" no Brasil contemporâneo: são cidadãos que entendem como questão política e urbana são indissociáveis para auto-organizar a sociedade. Ao mesmo tempo, isso não é opção estética- mas uma forma de compreender o que, erroneamente, é atribuído como "brasileirismo" enquanto fenômeno sempre camaleônico. Também se destaca o fato de Daniel Kertzman dar enfase à literatura na parte final de sua vida, como modo de preparação de um futuro que já acontece.